7 – Filosofia da sexualidade humana: o erotismo:
· “Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo”. (Roland Barthes).
7.1 – Introdução:
· A distinção entre o homem e o animal se dá pelo trabalho, por meio do qual o homem se realiza como ser cultural, abandonando o mundo da natureza. Para que a civilização pudesse existir, foi necessário o controle da instintividade humana, e a passagem para o mundo humano se deu com a instauração da lei e, consequentemente, com o advento da interdição.
· As proibições estabelecem regras que visam controlar o sexo e a agressividade, de modo a tornar possível a vida em comum. O processo observado na história da humanidade se repete na educação de cada criança, na sua lenta adequação ás normas sociais, o que faz com que o homem sempre sonhe nostalgicamente como “paraíso perdido”.
· Que forças são essas que o homem precisa controlar, desviar, canalizar para outros setores aceitos socialmente?
· Freud chama de libido a força primária, a energia da natureza sexual, orientada pelo princípio do prazer e que se encontra numa instância da personalidade chamada ID. O contato com as normas sociais determina, no entanto, a formação do SUPEREGO, que interioriza as forças inibidoras do mundo exterior e passa a ser regido pelo princípio do dever. O conflito entre essas duas forças antagônicas deverá ser resolvido pelo EGO, que, a partir do princípio de realidade, saberia lidar com o desejo, decidindo da conveniência de realizá-lo.
· Desde que a cultura se tornou possível, a energia sexual não orientada para os fins primários a que fora originalmente destinada, é utilizada para outros fins que não os propriamente de natureza sexual. Assim, Freud vê, nas diversas atividades como o trabalho, o jogo, a produção artística, formas sublimadas da utilização da libido. A sublimação é, portanto, a pulsão desviada para um alvo não sexual, quando visamos atividades socialmente valorizadas.
· Para a teoria freudiana, há libido investida em todos os atos psíquicos, de uma forma ou de outra, e é isso que nos permite encontrar prazer também nas atividades que não são primariamente de natureza sexual.
· Como vemos, a energia sexual está difusa nos diversos atos que realizamos com prazer, mesmo quando não se manifesta com o tal, ou seja, como pura sexualidade. Assim, a sexualidade humana não é simples expressão biológica: embora a atividade sexual seja comum aos animais e aos homens, apenas estes a transformam em atividade erótica. Pois só no homem ela é busca psicológica, independente do fim natural dado pela reprodução, e se traduz em infinita riqueza de formas que o espírito empresta à sexualidade. A ação erótica é ocasião da expressão da alegria e da invenção.
· Mesmo quando busca seus fins primários, a sexualidade é uma força agregadora das pessoas. O homem, percebendo-se um ser descontínuo, ou seja, separado de todo o resto, procura substituir esse isolamento por um sentimento de continuidade profunda. A sexualidade surge como uma linguagem possível, por meio da qual nos comunicamos com o outro, rompendo a descontinuidade dos corpos: a carícia é a “palavra” do corpo.
· Por isso a sexualidade surge também como a expressão máxima da intimidade e do desejo. Para o filósofo francês Bataille, o domínio do erotismo está justamente no desejo que triunfa da proibição. O comportamento erótico se opõe ao comportamento habitual. Tudo o que é construído para o estabelecimento das relações formais começa a se dissolver na excitação sexual: “a nudez destrói a boa figura que as nossas roupas emprestam”; as palavras obscenas, a imaginação exacerbada, as transgressões das proibições, a violação do corpo, o excesso desmedido, tudo leva a uma “perda” constante de si mesmo que culmina na ‘pequena morte’ do orgasmo: o êxtase e a vertigem são , de certa forma, um “sair de si”.
· O impacto gerado pelo erotismo leva as pessoas a temerem a ação dele. A paixão, apesar da promessa de felicidade que a acompanha, introduz a perturbação e a desordem. Talvez resida aí a necessidade que os poderosos sentem de controlar a sexualidade pela repressão.
7.2 – Obstáculos a Eros:
· Já podemos antever que nem sempre o controle da sexualidade é saudável e consciente. Voltemos a Freud: quando o EGO, sob o comando do SUPEREGO, não consegue tomar consciência das exigências do ID, por serem demasiadamente conflitivas e inconciliáveis com a moral, essas exigências são rejeitadas e ficam no inconsciente. Entretanto, a energia não canalizada não permanece contida, mas reaparece sob a forma de sintomas, muitas vezes neuróticos. É assim que Eros se torna doente, e a ele se sobrepõe Tanatos (morte). O sexo passa a ser visto numa relação ambígua de atração e repulsa, desejo e culpa.
· Tal ambigüidade gera também tendências opostas de comportamento igualmente criticáveis: o puritanismo e a permissividade, ou seja, a oscilação entre vigiar e proibir e tudo permitir. É o que veremos a seguir.
7.2.1- O puritanismo:
· O discurso moralista e puritano é herdeiro das tendências neoplatônicas que desvalorizam o corpo e consideram que o caminho da humanização está na “purificação” dos sentidos “mais baixos”. A sexualidade deixa de fazer parte do homem integral, é confinada à *alcova, ao silêncio. A visão platônico-cristã dissocia o amor espiritual do amor carnal e associa sexo ao pecado. O apóstolo São Paulo defendia o celibato, mas dizia que era “melhor casar-se que abrasar-se”. Santo Agostinho, que tivera vida devassa antes da conversão, achava o prazer um companheiro perigoso.
· *Alcova – quarto fechado e sem janelas.
· Os ideais ascéticos estimulam a continência, que é o controle da atividade sexual até a abstinência. Mas, para isso, o homem deve lutar contra a tentação, procurando todos os meios de fugir à luxúria (sexualidade).
· A Reforma protestante retoma essa temática, e o trabalho surge como a ocasião de purificação. É conhecida a tese do sociólogo Max Weber contida na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, onde mostra como o ideal de vida ascética é o núcleo da ética protestante. Pela teoria da predestinação, a salvação ou a condenação das almas independe do próprio homem, pois é Deus que nos escolhe ou nos condena. Mas eis o que importa: as obras, a riqueza, a prosperidade, são sinais da escolha divina. Daí o trabalho ser o meio de fugir da tentação e a condição da purificação. “A ociosidade é a mãe de todos os vícios”, e o principal pecado é a preguiça. Está surgindo aí a moral burguesa.
· O erotismo é uma das mais intensas e vitais experiências do homem e se exprime pela força agregadora que leva as pessoas a entrarem em contato. Mas as convenções tornam as relações impessoais e impedem o autêntico encontro amoroso.
· O princípio de adestramento do corpo, que deve ser submetido a uma disciplina cada vez mais férrea (lembre-se da jornada de trabalho de quatorze e dezesseis horas no século XIX), faz com que o trabalho não seja apenas um freio para o sexo, mas que promova um processo de dessexualização e deserotização do corpo.
· O que ocorre aí está além do que foi dito a respeito da noção de sublimação. Quando esta acontece, parte da libido se oriente para fins socialmente aceitos, e a sociedade se torna possível através do controle das forças instintivas. No presente caso, no entanto, há uma situação de dominação em que uma classe se encontra submetida a um trabalho alienado, fragmentado, repetitivo e mecânico em que não há mais prazer.
· Segundo a análise de Marcuse em Eros e civilização, trata-se de uma “super-repressão”, intimamente ligada ao “princípio de desempenho”. O trabalhador interioriza a necessidade de rendimento, de produtividade, preenchendo funções preestabelecidas e organizadas em um sistema cujo funcionamento se dá independentemente da participação consciente de cada um: “Eficiência e repressão convergem”.
· O sexo, retirado da amplitude inicial em que deveria se encontrar, isto é, em todas as ações humanas, é restrito a momentos isolados, nas horas lazer. E mais ainda: é submetido a um controle para que não se desvie da função de procriação, considerada fundamental, e é reduzido á genitalidade (ao próprio ato sexual).
· Na família burguesa vão se tecendo os papéis destinados a cada elemento. O pai é o provedor da casa, aquele que garante a subsistência da família, e seu espaço é público (o trabalho e a política). A mulher, “protegida” pelo homem, desempenha o papel biológico que lhe é destinado e fica confinada no lar.
· A consequencia disso é a chamada dupla moral, isto é, a existência de uma moral para a mulher e outra para o homem.
· Para que a mulher possa desempenhar seu papel de mãe, a educação da menina é orientada como se ela fosse um ser assexuado. Sua vida sexual deve começar apenas no casamento e, muitas vezes, sem os “prazeres da luxúria”. A virgindade é valorizada, o adultério punido (até pouco tempo, inclusive no código penal) e sempre se aceitou com naturalidade as justificativas de “matar para lavar a honra”.
· Por outro lado, a educação do menino é bem diversa, orientada mesmo para uma vida sexual precoce. Um exemplo desse processo encontra-se no romance de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo, em que um pai de família contrata uma governanta alemã sob o pretexto de educar os filhos (um rapaz e duas meninas), mas com o objetivo oculto de proceder à iniciação sexual do filho (sem problemas de vícios e doenças). A mesma duplicidade se repete no comportamento do próprio pai, quando às quartas-feiras à noite frequentava o vale do Anhagabaú, então zona de meretrício, e de onde não traz sequer um fio de cabelo estranho.
· Trata-se de um comportamento que dicotomiza a figura feminina: ou é santa ou é prostituta. De qualquer forma, é interessante como a recusa de sexualizar a mulher se contrapõe, a todo o instante, à tendência a sexualizá-la de forma perversa. Veja, por exemplo, o uso simples dos adjetivos honesto e sério. O que entendemos por “homem honesto” ou “sério” é muito diferente do que queremos dizer com “mulher honesta” ou “séria”. Um homem indignado pode ter o seu comportamento analisado de diversas formas. Idêntico comportamento na mulher gera explicações referentes à suposta “precariedade” da sua vida sexual. De um homem, no seu serviço, exige-se competência, de uma mulher, que também seja bonita e charmosa.
· A própria mulher tem em si mesma esse tecido ambíguo da exposição e da negação da sua sexualidade. É ensinado desde cedo a ser vaidosa, insinuante. Mas deve ir até certo ponto, no limite da decência. Buñuel mostra o paroxismo dessa situação no filme Belle de jour (A bela da tarde), onde uma mulher da alta sociedade freqüenta, à tarde, um bordel.
· Também é ambíguo o papel da prostituta: condenada e ridicularizada, é no entanto o contraponto da virgindade das donzelas de boa família. “Inúmeros estudos têm mostrado como, na geografia das cidades (anteriores às megalópoles contemporâneas), o bordel é tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola, integrando-se à paisagem, ainda que significativamente localizado na fronteira da cidade, quase seu exterior. Nas grandes cidades contemporâneas, a localização torna-se central, mas sob a forma de guetos e, portanto, de espaço segregado, significativamente designado em São Paulo como “boca do lixo”. Em suma, a sociedade elabora procedimentos de segregação visível e de integração invisível, fazendo da prostituta peça fundamental da lógica social.
7.2.2 – A permissividade:
· Esse grado de nítida repressão sexual tem sido substituído, nas últimas décadas, pela valorização da sexualidade, o que nos levaria, num primeiro momento, a admitir uma liberação. Veremos, entretanto, como essas alterações têm nuances que precisam ser esclarecidas. O movimento estudantil de maio de 1968, iniciado na França e propagado pelo mundo, teve importância no processo de procura da afirmação, como parte integrante do ser humano, do direito à sexualidade e da alegria por ela proporcionada. A dupla moral foi duramente criticada, assim como todas as formas hipócritas de relacionamento humano; os movimentos feministas tentaram recuperar dignidade e a autonomia da mulher; houve a exigência de uma linguagem mais livre; iniciou-se a valorização do corpo.
· Estava começando a chamada revolução sexual.
· Mas eis que surgem alguns problemas. Parafraseando nosso poeta Chico Buarque, a sexualidade “é aquilo que não tem governo, nem nunca terá”: não permite padronizações, não pode ser reduzida a fórmulas, nem se submete a receitas.
· Ora, o ideal de um corpo erotizado, de um ambiente erotizado, é uma ameaça à sociedade, que exige um corpo dócil e à disposição para trabalhar quanto for necessário à produtividade do sistema.
· Como reage o capitalismo diante de tais formas emergentes de “dissolução” dos costumes? Incorpora-as para amenizar os seus efeitos. Vejamos como isso ocorre.
· Uma ampla produção de revistas, filmes, livros, peças teatrais, sites, salas de bate papo virtual veio atender ao interesse despertado pelas questões sexuais. Mas essa produção se acha voltada para o “novo filão” de dinheiro: o sexo torna-se vendável e exposto como num supermercado.
· No entanto, segundo Marcuse, há apenas uma ilusão de liberação sexual; na verdade, continuam ocorrendo formas sofisticadas de repressão.
· Em primeiro lugar, porque a sexualidade que se acha “liberada” é a sexualidade genital, isto é, a que se centraliza no ato sexual. Ora, isso é empobrecimento da sexualidade humana, que deveria estar difusa não só no corpo todo como também no ambiente e nos atos não propriamente sexuais. Já vimos que o trabalho alienado “deserotizou” o ambiente humano, e é esta a condição de se manter a produção e a eficiência. Assim, a canalização dos instintos para os órgãos do sexo impede que seu erotismo “desordenado”, “improdutivo”, prejudique a boa ordem do trabalho, extravasando os limites permitidos. O alívio de fim-de-semana dado às necessidades sexuais cada vez mais “liberadas” faz o indivíduo pensar que, afinal, este mundo não é tão hostil assim aos seus desejos; mas, na verdade, o que está sendo ocultado é que “o ambiente no qual o indivíduo podia obter prazer – que ele podia concentrar como agradável quase como uma zona estendida de seu corpo – foi reduzido. Consequentemente, o ‘universo’ de concentração de desejos libidinosos é do mesmo modo reduzido. O efeito é uma localização e contração da libido, a redução da experiência erótica para experiência e satisfação sexuais”.
· Além disso, trata-se de uma liberação “versão Playboy”: qualquer publicação similar deixa entrever a total permissividade, mas na verdade tais extravagâncias apenas são possíveis para um reduzido número de pessoas de alta renda; para a maioria, o sexo liberado surge como um sonho, como a ilusão de que tal paraíso seja um dia possível.
· Resta-nos examinar ainda outra forma de repressão. Se na sociedade padronizada, o papel do controle da intimidade coube num primeiro momento á religião – lembre-se do confessionário –, atualmente cabe à ciência, por meio da sexologia.
· Muito se escreve sobre o sexo e quase nada sobre o amor. Dizemos ainda: escreve-se muito sobre sexo, mas do ponto de vista científico. Os romanos tiveram a Ars amatoria (A arte de amar), de Ovídio; os japoneses, a sua arte erótica; os hindus, o Kama Sutra. Nessas obras, procura-se conhecer o sexo pelo domínio do corpo e pelo exercício do amor (trata-se de uma arte). A sexologia por sua vez, procura explicar o sexo pelo intelecto (é uma ciência).
· Segundo Michel Foucault, filósofo francês autor de História da sexualidade, “falar sobre sexo” é uma maneira camuflada de evitar “fazer sexo”. Daí a mudança da ars erótica para a scientia sexualis. A ciência surge como uma forma controladora da sexualidade e, através do “discurso da competência”, busca a “normalidade” e a “objetividade”. Explicando melhor: o discurso científico, se dizendo além dos tabus e dos preconceitos, reduz o sexo a uma visão biologizante; mostrando-o como algo “natural”, estabelece cânones (padrões) sobre o que é normal ou patológico, classifica os tipos de comportamento, determina uma profilaxia (ou seja, normas de higiene e controle de doenças, tratamento, etc.) e aprisiona os indivíduos à última palavra do especialista “competente”, através do qual o sexo é vigiado e regulado.
· Diz Bataille: “O especialista nunca pode estar à altura do erotismo. Entre todos os problemas o erotismo é o mais misterioso, o mais geral, o mais longínquo. Para aquele que se não pode furtar a ele, para aquele cuja vida se abre à exuberância, o erotismo é, por excelência, o problema pessoal. É ao mesmo tempo, por excelência, o problema universal. O movimento erótico é também o mais intenso dos movimentos (à exceção, se quiser, da experiência dos místicos). Por isso está situado no cume do espírito humano”.
7.3 – Conclusões sobre a Filosofia da sexualidade:
· O que podemos concluir é que a repressão sexual sempre existirá em sociedades onde persistem relações de poder baseadas na exploração. Parece que a sexualidade só se libertará caso possa ser desfeito o nó da dominação social. Eros é do domínio da democracia, pois a “amizade é a recusa do servir”, como já sabia La Boétie , filósofo francês do século XVI.
· O caminho para a libertação de Eros, tornado Tanatos na sociedade alienada, passa portanto pela discussão política das condições dessa alienação.
EXERCÍCIO PARA CASA:
90) Que contradição existe entre instinto e civilização?
91) O que é sublimação?
92) qual é a diferença entre atividade sexual e erotismo?
93) Qual é o impacto gerado pelo erotismo?
94) O que é repressão?
95) Quais são as origens da posição moralista?
96) Qual é o sentido do trabalho na Idade Moderna?
97) O que é super-repressão para Marcuse?
98) Que relação tem a super-repressão com a sexualidade?
99) O que é dupla moral? Quais são as conseqüências para a mulher?
100) Que alterações provocou o movimento de maio de 1968?
101) Por que a redução à sexualidade genital é considerada empobrecimento do erotismo?
102) Qual é a colocação de Foucault a respeito do discurso científico da sexualidade?
103) Por que, afinal de contas, a questão da repressão sexual é também uma questão política?
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