6 – Filosofia do Amor:
· “Que é que eu penso do amor? – Em suma, não penso nada. Bem que eu gostaria de saber o que é, mas estando do lado de dentro, eu o vejo em existência, não em essência. O que quero conhecer (o amor) é exatamente a matéria que uso para falar (o discurso amoroso). A reflexão me é certamente permitida, mas como essa reflexão é logo incluída na sucessão das imagens, ela não se torna nunca reflexividade: excluído da lógica (que supõe linguagem exteriores umas às outras), não posso pretender pensar bem. Do mesmo modo, mesmo que eu discorresse sobre o amor durante um ano, só poderia esperar pegar o conceito ‘pelo rabo’: por flashes, fórmulas, surpresas de expressão, dispersos pelo grande escoamento do Imaginário; estou no meu lugar do amor, que é seu lugar iluminado: ‘O lugar mais sombrio, diz um provérbio chinês, é sempre embaixo da lâmpada’”. (Roland Barthes).
6.1 – Eros (Cupido), Psique e seu opositor o Deus Anteros:
1. Cupido para os romanos, foi pela intervenção de seu eterno poder divino, como os elementos do próprio Caos e pela sua intervenção manifesta, que o Caos, a Noite e o Érebo (abismo, inferno) puderam unir-se para a procriação. Em grego, esse Deus antigo, anterior a toda Antigüidade, chama-se Eros. É ele quem inspira ou produz esta invisível e muitas vezes inexplicável simpatia entre os seres, para uni-los em outras procriações. Apesar dele não ser propriamente o amor, tem, entretanto uma grande conformidade com ele.
2. O poder de Eros (Cupido) vai além da natureza viva e animada: ele aproxima, une, mistura, multiplica, varia as espécies de animais, vegetais, minerais, líquidos, fluídos e toda criação. Eros (Cupido) é, pois o Deus da união, da afinidade universal; nem um outro ser pode evitar a sua influência ou força, pois Eros (Cupido) é invencível.
3. Segundo Platão, Eros (Cupido) aloja-se em quase todos os corações dos humanos, com exceção das pessoas de coração duro, pois o Deus é adverso à dureza. A sua maior glória consiste em não poder fazer mal nem em permitir que o façam. Ele não necessita do uso da força bruta, pois todos os homens o servem de livre e espontânea vontade. Dizem que aquele a quem o Amor envolve não caminha mais na escuridão.
4. Apesar de Eros (Cupido) ser um dos mais antigos Deuses da Antigüidade, as primeiras referências escritas apresentaram o Deus Eros (Cupido) ou como um companheiro ocasional de Afrodite (Vênus) ou como filho de Afrodite (Vênus) e Ares (Marte). Eros (Cupido) é o mais importante dos Deuses menores do Olimpo. Para Hesíodo, o Deus do Amor é o mais belo dos imortais.
5. Eros (Cupido) é um jovem travesso e irrequieto. Suas estátuas normalmente o representam com os olhos vedados, pois o Amor é quase sempre cego. Apesar de hiperativo, este jovem Deus é também muito belo, sério e extremamente generoso para com os mortais.
6. Sobre Eros (Cupido) Hesíodo expressou: “Coração mau, mas boca doce como o mel. Nada nele é verdade, nesse vadio, cruéis são as suas brincadeiras. Pequenas as mãos, contudo as suas setas voam longe como a morte. Minúscula a seta, mas atinge as alturas do céu. Não toques as suas dádivas traiçoeiras, estão impregnadas de fogo”.
7. Seus ajudantes são os Deuses Anteros, o vingador do Amor desprezado ou daqueles que simplesmente se opõem ao Amor, Hímero (Saudade) e Hímen (Deus da Festa de casamento).
8. Anteros é também o Deus da antipatia e aversão, sendo por isso também considerado o adversário do Deus Eros (Cupido) no mundo divino. Esta divindade separa, desune e desagrega. É tão salutar, forte e poderoso como o próprio Eros (Cupido).
9. É Anteros quem impede que os seres dessemelhantes em natureza se confundam. Se algumas vezes semeia a discórdia e o ódio em torno de si, se impede afinidade entre alguns elementos criando hostilidade, ele evita ao mesmo tempo que eles avancem os limites marcados, impedindo que a natureza caia novamente no caos, portanto é ele quem mantém a ordem no Universo.
10. Houve um Rei que tinha três filhas, todas elas encantadoras. Mas a beleza da caçula superava em muito as suas irmãs. Seu nome era Psique. Ela mais parecia uma Deusa de tanta beleza que tinha.
11. A fama de sua formosura propagou-se por várias regiões e dos quatro cantos do mundo e começou a vir diariamente vários cortejos de homens para contemplar e admirar com devoção a sua beleza. Ela começou a ser homenageada como se fosse uma autêntica Deusa. Nem a própria Afrodite (Vênus) se comparava a esta jovem, a ponto de ficar esquecida e seus templos e altares que lhe eram consagrados ficarem abandonados e acumulados de cinzas frias. Suas cidades prediletas foram ficando progressivamente desabitadas e acabaram por cair em ruínas. Todas as honrarias que anteriormente eram prestadas a Deusa Afrodite (Vênus) tinham sido transferidas para a simples e mortal donzela, Psique.
12. Extremamente descontente, Afrodite (Vênus), vendo-se assim posta em segundo plano, recorreu ao auxilio de seu filho, o belo jovem alado Eros (Cupido) ou Amor, cujas flechas não havia proteção possível, nem no Céu nem na Terra. Depois de relatar suas queixas, ele imediatamente prontificou-se em cumprir o que a mãe lhe pediu:
13. Ele deveria usar seus poderes para fazer com que Psique se apaixonasse perdidamente pelo ser mais vil e desprezível que existisse. Teria feito de bom grado se Afrodite (Vênus) não lhe tivesse mostrado a bela Psique antes dele agir.
14. Como andasse absorvida pela raiva e pelo ciúme, a Deusa não imaginou que a beleza de Psique poderia ser notada até mesmo por seu filho, que ao vê-la, sentiu como se uma de suas próprias flechas o tivesse transpassado o coração.
15. Sem palavras, Eros (Cupido) nada disse a sua mãe que se retirou feliz e confiada de que seu filho não tardaria a pôr em prática o seu pedido. Só que os acontecimentos não seguiram o rumo que ele tinha previsto, pois a moça não se apaixonou por nenhum ser horrendo e também por mais ninguém. O mais estranho é que ninguém se enamorou dela, apenas se contentavam e admirá-la, adorá-la para depois casar-se com qualquer outra moça. As duas irmãs, indubitavelmente inferiores, tinham ambas se casado com monarcas muito influentes. Psique, a Bela, continuava só, admirada apenas, nunca amada. Parecia que nenhum homem a desejava para esposa.
16. A família ficou muito preocupada com esta situação. Seu pai resolveu então consultar o oráculo de Febo Apolo para se aconselhar em como arranjar um marido para sua filha. A resposta do oráculo foi terrível, pois antes disso Eros (Cupido) já havia contado a Febo Apolo o que tinha se passado lhe pedindo ajuda. De acordo com o combinado entre ambos, Febo Apolo fez saber que Psique vestida do luto mais pesado, deveria ser levada e abandonada no cimo de uma montanha, onde o marido que lhe estava destinado seria uma medonha serpente alada, mais forte que os próprios Deuses e que iria fazer dela a sua esposa.
17. Grande foi a tristeza de todos que lamentaram essa terrível notícia. No dia marcado, Psique vestida como uma defunta foi conduzida ao local combinado acompanhada de um verdadeiro cortejo fúnebre. Psique demonstrando uma coragem inquebrantável disse que eles deveriam ter chorado antes, pois foi sua beleza que desencadeou sobre ela o ciúme do céu e que eles deveriam ir embora, pois estava feliz de saber que seu sofrimento acabaria com seu breve fim.
18. Todos partiram dolorosamente desesperados, depois de abandonarem naquele lugar ermo um ser tão belo e tão frágil para enfrentar a sua maldição. Ao voltarem, fecharam-se dentro das paredes do palácio onde viviam para ali passarem o resto dos seus dias, chorando a triste sorte da jovem.
19. Psique sentada no alto do monte esperava o horror que nem ela sabia qual. Foi enquanto chorava trêmula que uma doce brisa chegou até ela, envolvendo-a silenciosamente e foi com um suave sopro de Zéfiro, o vento mais delicado e brando que ela sentiu-se transportada, flutuando nos ares. Desceu dessa forma a montanha rochosa até pousar finalmente sobre uma relva fofa e ornamentada com flores aromáticas.
20. Tudo ali era paz e então todas as suas preocupações se desvaneceram e Psique acabou adormecendo. Quando acordou, percebeu que estava próxima a um alegre riacho, em cuja margem estava erguida uma majestosa mansão com pilares de ouro, paredes de prata e assoalhos incrustados de pedras preciosas. Mais parecia a habitação de um Deus.
21. O lugar parecia um ermo e o silêncio era absoluto. Ainda atemorizada com tudo o que acontecera e com aquela visão de tão grande esplendor, ela aproximou-se da mansão e ao entrar teve uma hesitação devido ao murmúrio de vozes que ouviu. Ninguém apareceu, mas as palavras eram percebidas claramente e elas disseram-lhe que a casa era para ela e que deveria entrar sem receios, tomar um banho e repousar enquanto aguardasse a bela refeição que seria servida. Também lhes informaram serem seus criados e que estariam a sua disposição para tudo que desejasse.
22. Foi o banho mais agradável e a refeição mais deliciosa de toda a sua vida. Jantou ao som de música suave que parecia um coro enorme entoando cânticos acompanhados à harpa, mas ela não os conseguia ver.
23. Durante a parte da tarde ela esteve sempre sozinha, apenas acompanhada pela estranha companhia das vozes. A noite se aproximava e ela sabia que o marido viria para junto dela. E assim aconteceu. Em seu escuro quarto ela sentiu o marido chegando e deitando-se ao seu lado e com uma voz suave murmurando-lhe suavemente palavras de amor e carinho aos ouvidos. Todos seus receios desapareceram, pois ela soube naquele instante, mesmo sem poder ver, que não se tratava de nenhum monstro ou ser terrífico, muito pelo contrário, era a concretização do marido amado por quem sempre desejou e esperou.
24. O tempo passou e apesar de considerar-se feliz, naturalmente esta semi-companhia não a satisfazia por completo. Não obstante, certa noite, o marido, que ela amava, embora nunca o tivesse visto, conversou com ela muito a sério e avisou-a de que suas irmãs viriam a constituir um grande perigo para a felicidade de ambos. Ele disse-lhe que elas viriam chorar por ela junto ao monte donde desaparecera e acrescentou que não deixasse que elas a vissem, pois acarretaria grandes tristezas para ele e ainda a levaria a ruína.
25. Psique prometeu seguir os seus conselhos, mas passou todo o dia chorando e pensando nas irmãs e nela própria, que, afinal, não as podia consolar. Estava ainda chorosa quando o marido chegou, mas nem as carícias dele a confortaram. Por fim, para grande mágoa de Eros (Cupido), ele cedeu ao desejo da esposa e deixou que ela fizesse o que queria, mas ainda ressaltou que isso seria sua perdição.
26. Depois ainda preveniu-a de que não se deixasse persuadir por ninguém no sentido de o ver, sob pena de se separar dele para sempre. Psique respondeu que nunca faria semelhante coisa, pois preferia morrer a viver sem ele. Mesmo assim ela implorou por seu consentimento para alegrar-se voltando a ver suas irmãs. Triste, o marido prometeu-lhe que assim aconteceria.
27. Na manhã seguinte suas duas irmãs vieram trazidas do cimo da montanha transportadas por Zéfiro. Feliz e excitada, Psique estava já à espera delas. Passou-se muito tempo antes que pudessem articular alguma palavra, pois a alegria que sentiram era demasiada grande para ser exteriorizada, a não ser por lágrimas e abraços.
28. Finalmente suas irmãs mais velhas entraram no palácio, quando perceberam todos aqueles tesouros de valor inexcedível rodeando Psique. Sentadas à mesa para um luxuoso banquete, servido ao som de uma música maravilhosa, suas irmãs foram tomadas por um amargo sentimento de inveja e uma curiosidade devoradora de conhecer e saber quem era o senhor de toda aquela magnificência.
29. Ao ser interrogada, Psique cumprindo sua palavra dada ao marido, afirmou apenas tratar-se de um jovem que no momento se encontrava ausente, numa caçada. Depois, enchendo-lhes as mãos de ouro e de jóias, ordenou a Zéfiro que as conduzisse de regresso à montanha. Elas foram embora de boa vontade, mas com os corações queimando em brasas de ciúmes. Toda a fortuna pessoal e felicidade de que desfrutavam lhes pareciam absolutamente insignificantes se comparadas com as de Psique. Assim roídas de raiva e inveja, elas começaram a arquitetar um plano para arruinar sua irmã.
30. Nessa mesma noite, o marido de Psique preveniu-a mais uma vez sobre o perigo de suas irmãs, mas novamente Psique não lhe deu ouvidos e, quando ele lhe pediu que não as trouxesse novamente em casa, ela lembrou-lhe que bem bastava nunca poder olhar para ele e que não seria justo também proibi-la de ver todas as outras pessoas, inclusive as próprias irmãs, que tanto estimava. Novamente ele cedeu e não tardou para que as duas malvadas reaparecessem. Desta vez, porém, elas vieram com um plano maligno e cuidadosamente elaborado.
31. As duas irmãs já estavam totalmente convencidas de que Psique nunca vira nem sabia ao certo quem era seu marido, pois suas respostas eram hesitantes e contraditórias ante todas as perguntas que lhe faziam sobre ele.
32. Depois de lhe repreenderem por ter-lhes ocultado os detalhes dessa terrível situação, suas irmãs passaram a colocar dúvidas na cabeça de Psique. Seria ele um homem ou uma serpente hedionda, tal como o oráculo de Febo Apolo havia predito? Se for a serpente, seria natural que se mostrasse sempre amável, mas quem garantiria que ele não a devoraria, caso se revoltasse contra ela?
33. Psique ficou aterrorizada e o amor que ela sentia deu lugar ao medo que correu-lhe pelas veias inundando-lhe o coração. Várias razões já haviam lhe passado pela cabeça pelo fato de ser proibida de ver-lhe. Ela imaginou um terrível motivo, afinal, nada ela sabia acerca do marido. Psique ficou a pensar se o marido não fosse de horrendo aspecto, seria uma crueldade proibi-la de contemplá-lo.
34. Muito perturbada e hesitante, ela balbuciando, deu a entender às irmãs que realmente nunca o tinha visto e que sempre estivera com ele na escuridão. Ela começou a chorar e soluçar, achando tudo isto muito estranho. Nesse momento ela implorou-lhes por um conselho.
35. Com muita antecedência, as malvadas irmãs já tinham ensaiado qual o conselho deveriam dar e recomendaram-lhe que escondesse junto ao leito uma lamparina e uma faca aguçada, para a noite, enquanto o marido dormisse, ela deveria levantar-se, acender a lamparina e no caso de ser um monstro, ele deveria enterrá-la rapidamente no corpo medonho que a luz lhe revelaria. Elas também combinaram de ficar por perto para assegurar a sua volta para casa paterna.
36. Deixaram-na, então, dilacerada pela dúvida e sem saber o que fazer. Psique amava seu querido esposo, mas sendo um monstro ela o abominava e teria que matá-lo. Ela sabia que primeiramente teria de se certificar e assim ficou durante todo o resto do dia. Pensamentos contraditórios digladiavam-se dentro de sua cabeça.
37. Quando a noite caiu, ela já estava resolvida a fazer pelo menos uma coisa, vê-lo. Seu marido já estava dormindo profundamente, quando Psique encheu-se de coragem e acendeu a lamparina. Aproximou-se do leito e erguendo a luminária olhou avidamente para o corpo escultural de seu marido. Seu coração transbordou de alívio ao ver diante de si o ser mais belo e perfeito que seus olhos jamais haviam visto e perante o que, a própria lamparina parecia ter uma luz ainda mais intensa.
38. Enlouquecida pela vergonha da falta de confiança que demonstrara, Psique caiu de joelhos. Teria até enterrado a faca no seu próprio peito, se não fora ter-lhe escorregado da mão trêmula. Mas essas mesmas mãos inseguras, que a salvaram, atraiçoaram-na também. No momento em que se reclinava sobre o marido, arrebatada pela sua presença e incapaz de negar a si própria a ventura de encher os olhos com aquela beleza, caiu sobre o ombro do jovem uma gota de azeite da candeia, que o fez despertar, de súbito. Ao ver a luz, deduziu a deslealdade da esposa e, sem dizer uma palavra, desapareceu.
39. Psique precipitou-se a correr atrás dele, pela noite adentro. Não conseguiu alcançá-lo, mas apenas ouviu sua voz dizer que ele era o Deus Eros (Cupido) e que onde não há confiança não há amor. Foram suas últimas palavras antes de desaparecer.
40. Psique começou a gritar arrependida, pois perdera seu marido, o Deus do Amor. Ela continuou recobrando o ânimo e resolveu passar o resto de sua vida a procurá-lo, mesmo que ele já não mais a ame. Ela queria mostrar-lhe o quanto o amava.
41. Andando sem rumo, ela não nunca desistiu de tentar reencontrá-lo. Psique não fazia a mínima idéia de que Eros (Cupido) estava recolhido nos aposentos de sua mãe Afrodite (Vênus) para se tratar da queimadura.
42. Porém, quando Afrodite (Vênus) teve conhecimento do que se passara e que Psique tinha sido por ele escolhida, ela deixou o filho entregue aos seus sofrimentos e muito zangada foi em busca de Psique, de quem ela, nesse momento, sentia ainda mais ciúmes. Afrodite (Vênus) estava resolvida a mostrar-lhe as conseqüências de haver provocado o desagrado da Deusa.
43. A pobre Psique, no seu errar desesperado, tentava ganhar os favores dos Deuses. Constantemente oferecia-lhes orações fervorosas, mas nenhum tinha coragem de desencadear a inimizade de Afrodite (Vênus). Por fim, acabou por compreender que já não havia esperanças para ela, nem no Céu nem na Terra. Tomou então a decisão extrema de ir ao encontro de Afrodite (Vênus) e oferecer-se humildemente como serva, tentando, assim, aplacar a sua ira. Psique também pensou que Eros (Cupido) poderia estar na casa de sua mãe e pôs-se a caminho da casa de Afrodite (Vênus), enquanto esta a procurava também por toda parte.
44. Quando Psique chegou à presença de Afrodite (Vênus), esta riu-se à gargalhada e perguntou-lhe sarcasticamente se andava à procura de marido, uma vez que o primeiro não devia estar nada interessado nela, porquanto quase morrera com a queimadura que ela lhe fizera. A moça nada respondeu. Afrodite (Vênus) continuou:
45. – “Mas, realmente, és uma moça tão vulgar e desfavorecida que não conseguirás nunca arranjar alguém que te queira a não ser em troca de serviços árduos e difíceis! Vou mostrar-te, por isso, a minha boa vontade, treinando-te nesse gênero de exercícios”.
46. – Ao pronunciar estas palavras, pegou uma enorme quantidade de sementes de trigo, de papoula, de milho miúdo e outras e misturou-as todas num montão.
47. – “Tens de apresentar tudo devidamente separado, ao cair da tarde! E olha que é para teu bem!”.
48. – E depois deste conselho retirou-se.
49. Psique ficou sentada e olhando com perplexidade para as sementes que tinha diante de si. Estava completamente desorientada com a crueldade patenteada na ordem que recebera, mas, no entanto, nem sequer valia a pena dar início a uma tarefa tão manifestamente irrealizável. Nesse momento terrível, porém, ela, que, até então, não despertava a mínima compaixão dos mortais nem dos imortais, comoveu pequenas formigas que tiveram pena da moça e resolveram ajuda-la a realizar a tarefa.
50. Imediatamente surgiram ondas de formigas, umas após outras, que se encarregaram de separar e dividir aquela massa confusa. Finalmente, o trabalho foi dado por terminado. Todas as sementes estavam arrumadas nos seus devidos lugares, conforme a respectiva qualidade. Isto foi o que se deparou Afrodite (Vênus), ao regressar para casa. Terrivelmente enfurecida ela disse a Psique que a sua tarefa ainda não havia nem de longe chegado ao fim. Depois, deu a Psique uma casca de pão para comer e mandou-a deitar-se no chão para dormir, enquanto ela descansaria no seu leito confortável e fragrante.
51. Afrodite (Vênus) tinha a idéia de submeter Psique a trabalhos muito pesados e realizados com fome para que a beleza da moça que tanto lhe causava ódio acabasse por desvanecer. Outra questão que ela não descuidava era o trabalho de verificar que o quarto de seu filho estivesse sempre bem fechado enquanto ele se restabelecia do ferimento. Afrodite (Vênus) regozijava-se com o modo como as coisas transcorriam.
52. Na manhã seguinte Afrodite (Vênus) planejou uma outra tarefa para Psique, mas, dessa vez bem mais perigosa. Ela deveria ir junto a margem do rio, onde o mato era mais denso e onde viviam as ovelhas com tosões de ouro. Ela deveria trazer-lha um bocado dessa lã brilhante.
53. O problema é que as ovelhas eram muito ferozes e ela com certeza seria atacada. Quando a desgraçada, cansada, chegou ao rio de águas calmas, teve uma vontade incrível de mergulhar nele para sempre, pois assim terminariam todos os seus sofrimentos e o seu desespero. Mas quando Psique ia jogar-se nas águas, ouviu uma voz suave, vinda de algum lugar perto do chão, próximo aos seus pés. Ela então percebeu que o sussurro vinha de uma cana verde que lhe disse para não suicidar-se, pois as coisas não eram tão ruins quanto parecia. Ela aconselhou Psique a esperar até que as ferozes ovelhas saíssem dos arbustos no fim da tarde, momento em que elas costumavam ir para a beira do rio para descansar. Esse seria o momento exato que ela poderia ir ao bosque onde elas brincavam para recolher uma grande quantidade de lã dourada pendurada nas sarças.
54. Após ouvir as instruções da gentil e amável cana verde, Psique conseguiu levar à cruel ama uma enorme quantidade de tosão brilhante. Afrodite (Vênus) recebeu-o com um sorriso malicioso e afirmou que houve alguém que a ajudou com certeza, pois sabia que ela nunca poderia ter feito tudo isto sozinha.
55. Em seguida ela deu mais uma penosa tarefa para Psique, como oportunidade de provar que realmente possuía coração forte e prudência ímpar como vinha manifestando. Ela então mandou Psique encher um frasco com água negra recolhida na nascente do terrível e odioso rio Estige que caía num monte próximo. Era, sem dúvida, a pior tarefa de todas as que já realizara, e Psique, à medida que se aproximava da queda d’água, tomou bem consciência do fato. Só um ser alado poderia se aproximar dos imensos rochedos escarpados e aguçados que a rodeavam, pois eles arremetiam as águas de modo aterrador. Apareceu então uma águia que pairou sobre ela com suas enormes asas, agarrou o frasco com o bico e depois regressou devolvendo-lhe cheio da tão almejada água negra.
56. A persistente Afrodite (Vênus), não desistia e nem deixava de acusar Psique de certa dose de estupidez perante tudo o que havia acontecido. Ela sempre obrigava a moça a realizar sempre mais uma prova e dessa vez encarregou-a de ir ao Reino de Hades (Plutão) pedir a sua esposa Prosérpina uma caixa de cosméticos emprestada. Psique deveria explicar que Afrodite (Vênus) estava muito necessitada de tratamento, pois o fato de cuidar de seu filho doente lhe deixou muito abatida.
57. Psique, obediente como sempre, seguiu a estrada que conduz ao Hades. As instruções foram-lhe transmitidas escrupulosamente por uma torre por onde passou e que lhe serviu de guia até chegar ao palácio de Prosérpina.
58. Depois de passar por uma enorme abertura na terra, ela caminhou sempre para baixo, em direção ao rio da morte, onde pagou ao barqueiro Caronte uma moeda para que a transportasse a outra margem. Neste ponto ela encontrou outra estrada que a levou até as portas do palácio onde o cão Cérbero estava de guarda. Conforme instruções anteriores, ela ofereceu-lhe um bolo para conquistar a simpatia do cão que deixou-a passar sem nenhum problema. Tudo aconteceu conforme a torre predisse e Prosérpina recebeu-a com muito prazer em fazer um favor a Afrodite (Vênus). Cheia de coragem, Psique trouxe a caixa para a sogra o mais rápido que pôde.
59. A prova seguinte aconteceu pela curiosidade e talvez ainda mais pela vaidade de Psique que não sossegou enquanto não viu qual o dom de beleza que vinha dentro da caixa que Prosérpina enviou para Afrodite (Vênus). Ela quis guardar um pouquinho para si própria, pois sabia tão bem como Afrodite (Vênus) que seu aspecto estava ficando ruim ante todos aqueles trabalhos que lhe foram impostos. Ele pensava na possibilidade de encontrar a qualquer momento seu marido Eros (Cupido) e queria estar mais bela para ele. Não resistindo a tentação, ela abriu a caixa e para seu grande desapontamento, não viu nada lá dentro. Subitamente de dentro da caixa surgiu um *langor de morte que lhe adormeceu profundamente.
60. *Langor – Enfraquecimento, debilidade.
61. Neste momento Eros (Cupido) o Deus do Amor entrou em ação, pois já se encontrava curado e estava cheio de saudades de Psique. Apesar de Afrodite (Vênus) ter fechado a porta de seu quarto à chave, é difícil manter o amor aprisionado e Eros (Cupido) voou pela janela a procura de sua amada Psique.
62. Não foi difícil encontra-la caída próximo ao palácio e num ápice, Eros (Cupido) afastou o sono dos olhos de Psique e meteu-o de novo na caixa. Depois, despertando apenas com um leve toque de uma das suas flechas ele repreendeu-a ligeiramente pela curiosidade que mais uma vez manifestara e pediu-lhe que levasse a caixa à mãe, assegurando-lhe que tudo correria bem dali em diante.
63. Enquanto a alegre Psique ia a toda a pressa ao encontro de Afrodite (Vênus), Eros (Cupido) dirigiu-se ao Olimpo para certificar-se de que sua mãe não lhes traria mais aborrecimentos e, com esse intuito, foi falar pessoalmente com Zeus (Júpiter). O Pai dos Deuses e dos homens concordou imediatamente com todos os pedidos de Eros (Cupido). Zeus (Júpiter) disse-lhe: – “Apesar de me teres causado grandes males no passado, de teres ferido muito gravemente o meu bom nome e a minha dignidade, obrigando-me a transformar-me em touro, em cisne e noutros animais, não posso recusar-te o que me pedes”.
64. Reuniu, então, uma assembléia magna dos Deuses e anunciou-lhes, inclusive a Afrodite (Vênus), que Eros (Cupido) e Psique iam casar-se com todo o cerimonial, e propôs que se concedesse à noiva o dom da imortalidade. Hermes (Mercúrio) conduziu Psique ao palácio dos Deuses e foi o próprio Zeus (Júpiter) que lhe ofereceu a ambrosia que a tornaria imortal, modificando totalmente a situação, como é de calcular. Afrodite (Vênus) não podia levantar objeções a que seu filho se casasse com uma Deusa. Era uma aliança excelente. Pensou também, sem dúvida, que, a partir do momento em que Psique ficasse a viver no Olimpo com o marido e com os filhos, teria muito do que cuidar e deixaria com certeza, de exercer influência sobre os homens e de interferir no seu próprio culto.
65. Assim, tudo terminou de modo excepcionalmente feliz. O Deus do Amor Eros (Cupido) e a Deusa da Alma Psique tinham-se procurado e, depois de muitas provações, acabaram por se encontrar e essa união nunca mais seria quebrada. (Universo Mágico dos Deuses – Cláudio Ribeiro Vieira).
DEBATE:
Por que Psique passou por tanto sofrimento?
O que você achou da atitude das irmãs de Psique?
O que você achou da atitude de Afrodite (Vênus)?
O que você achou da atitude de Eros (Cupido) com relação ao perdão?
6.2 – O Amor para Sócrates segundo Platão:
1. “... Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do que resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra.
2. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor.
3. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo.
4. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do Sol, o feminino da Terra, e o que tinha de ambos era da Lua, pois também a Lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores.
5. Eram, por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os Deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os Deuses. Zeus então e os demais Deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça – pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam – nem permitir-lhes que continuassem na impiedade.
6. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos”. Agora, com efeito, continuou, “eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo”, disse ele, “eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando”. Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição.
7. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher – o que agora chamamos mulher – quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo.
8. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para frente – pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida. É então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantando nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana.
9. Cada um de nós, portanto é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes os de natural mais corajoso.
10. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros.
11. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao outro.
12. A ninguém, com efeito, pareceria que se trata de união sexual, e que é porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e o indica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro? E se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separareis um do outro? Pois se é isso que desejais, quero fundir-vos e forjar-vos numa mesma pessoa, de modo que de dois vos torneis um só e, enquanto viverdes, como uma só pessoa, possais viver ambos em comum, e depois que morrerdes, lá no Hades, em vez de dois ser um só, mortos os dois numa morte comum; mas vede se é isso o vosso amor, e se vos contentais se conseguirdes isso. Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só.
13. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é, portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos separados por Deus, e como o foram os árcades pelos lacedemônios; é de temer então, se não formos moderados para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estrelas estão talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem.
14. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos exortar à piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em que o Amor nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha – e se opõe todo aquele que aos deuses se torna odioso – pois amigos de Deus e com ele reconciliados descobriremos e conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos fazem. E que não me suspeite Erixímaco, fazendo comédia de meu discurso, que é a Pausânias e Agatão que me estou referindo – talvez também estes se encontrem no número desses e são ambos de natureza máscula – mas eu, no entanto estou dizendo a respeito de todos, homens e mulheres, que é assim que nossa raça se tornaria feliz, se plenamente realizássemos o amor, e o seu próprio amado cada um encontrasse, tornado à sua primitiva natureza. E se isso é o melhor, é forçoso que dos casos atuais o que mais se lhe avizinha é o melhor, e é este o conseguir um bem amado de natureza conforme ao seu gosto; e se disso fôssemos glorificar o Deus responsável, merecidamente glorificaríamos o Amor, que agora nos é de máxima utilidade, levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá as maiores esperanças, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa primitiva natureza e, depois de nos curar, fazer-nos bem aventurados e felizes...”(Sócrates In Platão – Os pensadores – Abril S.A. Cultural ).
· A história contada por Sócrates serviu para ilustrar o relacionamento homossexual entre Pausânias e Agatão. Sócrates, o último dos oradores do referido diálogo, começa dizendo que Eros representa um anelo de qualquer coisa que não se tem e se deseja ter. Também usa um mito para ilustrar sua afirmação de que Eros é descendente de Poros (Riqueza) e de Penia (Pobreza). O seu significado reside na ânsia de sair de uma situação de penúria para uma de riqueza; é a oscilação entre o possuir e o não-possuir. “É capaz de desabrochar e de viver, morrer e ressuscitar no mesmo dia. Come e bebe, dá e se derrama, sem nunca estar rico ou pobre”.
· A partir dessa discussão, Platão, pela boca de Sócrates estabelece a relação entre Eros e a Filosofia. Assim com os Deuses não filosofam nem aprendem por já possuírem a sabedoria, os tolos e os ignorantes não aspiram adquirir conhecimento pois, embora nada saibam, julgam saber. Só o Filósofo deseja conhecer, pois sabe que não sabe e sente necessidade de conhecer. O Filósofo ocupa um lugar intermediário entre a sabedoria e a ignorância. Portanto, Platão não reduz essa busca apenas à procura da outra metade do nosso ser que nos completa; Eros é ânsia de ajudar o eu próprio autêntico a realizar-se. Essa realização se faz enquanto a vontade humana tende para o Bem e para o Belo: subordina a beleza física à beleza espiritual e desliga-se da paixão por um determinado indivíduo ou atividade ocupando-se com a pura contemplação da beleza.
· É verdade que a posição platônica deve ser compreendida dentro da visão na qual Platão subordina Eros a Logos, ou seja, subjuga as paixões à razão.
DEBATE:
O que você achou dos três sexos descritos por Sócrates?
O que você achou da atitude dos homens quando estavam unidos em duplas?
O que você achou da atitude dos Deuses do Olimpo?
Por que as pessoas se procuram com o objetivo de unirem-se pelo amor?
6.3 – O Amor no mundo contemporâneo:
· Na sociedade contemporânea, fala-se e escreve-se muito sobre sexo e quase nada sobre o amor. Talvez seja pelo fato de que o amor, sendo um enigma, não se deixa decifrar, repelindo toda tentativa de classificação ou definição. Por isso, a poesia, campo mítico por excelência, encontra na metáfora a compreensão melhor do amor. Realmente, a literatura nunca deixou de falar do amor.
· Talvez esse vazio conceitual se deva à dificuldade de expressão do amor no mundo contemporâneo. O desenvolvimento dos centros urbanos criou o fenômeno da “multidão solitária”: as pessoas estão lado a lado, mas suas relações são de contigüidade, relações que dificilmente se aprofundam, sendo raro o encontro verdadeiro. Talvez o falar muito sobre sexo seja uma tentativa de camuflar a impessoalidade fundamental dessas relações, na medida em que o contato físico simula o encontro.
· No entanto, não só as relações entre duas pessoas se acham empobrecidas. O afrouxamento dos laços familiares – não importa aqui analisar as causas nem procurar a validade da situação – lançou as pessoas num mundo onde elas contam apenas consigo mesmas. Mesmo que sejam válidas as críticas ao autoritarismo da família, esta ainda é o lugar da possibilidade do afeto. Ou, pelo menos, o sair dela não é garantia de ter esse vazio de amor preenchido. Além disso o trabalho na sociedade capitalista, estimulado pela competição e pelo individualismo, exige um ritmo exaustivo, mesmo para os que têm melhores chances, e confina a maior parte das pessoas em um trabalho alienado, rotineiro, repetitivo, de onde é impossível extrair algum prazer.
· Do ponto de vista da política, a situação também não é das mais reconfortantes. Se considerarmos que todo regime autoritário subiste em função da força e da opressão, o ambiente que daí decorre é de medo e de ódio. Eros pertence à democracia, que se baseia no pressuposto da igualdade e da negação da exploração. Tanatos (Morte) é o domínio do autoritarismo.
6.4 – O encontro: a intersubjetividade:
· Até aqui ressaltamos que Eros é predominantemente desejo. A força dessa energia que nos impulsiona a agir, a procurar o prazer e a alegria, nos faz questionar o princípio cartesiano de que o homem é um “ser pensante”. Não seria ele sobretudo um “ser desejante”? Não seria o desejo aquilo que mobiliza o homem, e a razão o princípio organizador que hierarquiza os desejos e procura os meios para a sua realização? Nesse sentido, não estamos querendo inverter o tema clássico superioridade da razão sobre a paixão, mas mostrar que esses dois princípios estão indissoluvelmente ligados.
· O que visa o desejo? Numa célebre frase, Hegel diz: “Amar é estender o seu corpo em direção a um outro corpo; mas é também, mais fundamentalmente, exigir que esse corpo, que ele deseja, também se estenda; é desejar o desejo do outro”.
· Isso significa que o desejo supõe uma relação e que o que se deseja sobretudo é o reconhecimento do outro. O amante não deseja se apropriar de uma coisa; ele deseja capturar a consciência do outro.
6.5 – Os paradoxos do amor:
· O amor, sendo o desejo de união com o outro, estabelece, no entanto um tipo de vínculo paradoxal: o amante deve cativar para se amado livremente. Podemos mesmo dizer que o fascínio é gerador de poder: o poder de atração de um sobre o outro. No entanto, tal “cativeiro” não pode ser entendido como ausência de liberdade, pois a união deve ser a condição da expressão cada vez mais enriquecida da nossa sensibilidade da nossa personalidade. É fácil observar isso na relação entre duas pessoas apaixonadas; a presença do outro é solicitada na sua espontaneidade, pois são os dois que escolhem livremente estar juntos.
· O amor imaturo, ao contrário, é exclusivista, possessivo, egoísta, dominador. Mas não é fácil determinar quando o poder gerado pelo amor ultrapassa os limites. Vimos que a força do amor está na atração que um exerce sobre o outro. Em que momento isso se transforma em desejo de controlar, de manipular?
· A sociedade capitalista, centrada no valor do “ter”, desenvolve formas possessivas de relação. O ciúme exacerbado é o desejo de domínio integral do outro. Marcel, personagem de Proust, inquieta-se, varado de ciúme até dos pensamentos de sua amada Albertine. Só descansa quando a contempla adormecida.
· Não queremos dizer que o ciúme não deva existir. Etimologicamente, ciúme significa “zelo”: o amor implica cuidado e temor de perder o amado. Portanto, se não desejamos o rompimento da trama tecida na relação recíproca e se o outro dá densidade à nossa emoção e enriquece nossa existência, sofremos até com a idéia da perda.
6.5.1 – Vínculo X Alteridade:
· Há outro paradoxo no amor: ele deve ser uma união, com a condição de cada um preservar a própria integridade. Faz com que dois seres estejam unidos e, contudo, permaneçam separados.
· O amor é o convite para sair de si mesmo. Se a pessoa estiver muito centrada nela mesma, não será capaz de ouvir o apelo do outro. É isso que ocorre com a criança, que naturalmente procura quem melhor preencha suas necessidades. Quando esse procedimento continua na vida adulta, torna-se impedimento do encontro verdadeiro. Basta lembrar a lenda de Narciso, que ao contemplar seu rosto refletido na água, apaixona-se por si próprio. Isso causa sua morte, pois esquece de se alimentar, tão envolvido se acha com a própria imagem inatingível. O narcisista “morre” na medida em que torna impossível a ligação fecunda com o outro.
· Esse egocentrismo persiste na adolescência, como momento de passagem da vida infantil para a vida adulta. Por isso o adolescente muitas vezes não ama propriamente o outro ser de carne e osso, mas ama o Amor. Trata-se do amor idealizado, romântico, um pouco fruto do medo de lançar-se nas contradições do exercício efetivo do amor.
· O exercício do amor supõe a descoberta do outro. Por isso o amor envolve o respeito, não no sentido moralista que rotineiramente se dá a esse conceito, não como temor resultante da autoridade imposta. “Respicere”, em latim significa “olhar para”, ou seja, o respeito é a capacidade de ver uma pessoa como tal, reconhecendo sua individualidade singular. Isso supõe a preocupação de que a outra pessoa cresça e se desenvolva como ela é, e não como queiramos que ela seja. O amor supõe a liberdade, e não a exploração: o outro não é alguém de quem nos servimos. O amor maduro é livre e generoso, fundando-se na reciprocidade.
· Uma lenda grega conta que um assaltante chamado Procusto aprisionava os viajantes e os adaptava a uma cama de ferro: se eram pequenos, os alongava; se eram grandes, os mutilava terrivelmente para que diminuíssem de tamanho. Quantos tiranos Procustos encontramos nos mais “ternos” namorados, ansiosos por adaptar o parceiro à sua própria medida!
· O paradoxo da relação amorosa, colocada ao mesmo tempo como desejo de união e preservação da alteridade, dimensiona a ambigüidade em que o homem é lançado. Os sentimentos gerados também são ambíguos: são sentimentos de amor e ódio para com aquele que escolhemos conscientemente, mas de cuja escolha resultou o abandono de outras possibilidades. O não saber viver nessa ambigüidade leva certas pessoas ou a procurar a “fusão” com o outro, do que decorre a perda da individualidade, ou a recusar o envolvimento por temer essa perda.
· No entanto, o risco do amor é a separação. Mergulhar numa relação amorosa supõe a possibilidade da perda. Segundo o psicanalista austríaco Igor Caruso, a separação é a vivência da morte numa situação vital: é a vivência da morte do outro em minha consciência e a vivência de minha morte na consciência do outro.
· Quando ocorre a perda, a pessoa precisa de um tempo para se reestruturar, pois mesmo quando mantém sua individualidade, o tecido do seu ser passa inevitavelmente pelo outro. Há um período de “luto” a ser superado após a separação, quando, então se busca novo equilíbrio.
· Uma característica dos indivíduos maduros é saber integrar a possibilidade da morte no cotidiano da sua vida. E, quando falamos em morte, nos referimos não só ao sentido literal mas às diversas “mortes” ou perdas que permeiam nossas vidas. No entanto, nas sociedades massificadas, onde o eu não é suficientemente forte, as pessoas preferem não viver, para não ter de viver com a morte. Por isso, também as relações tendem a se tornar superficiais, e é nesse sentido que o pensador francês Edgard Morin afirma: “Nas sociedades burocratizadas e aburguesadas, é adulto quem se conforma em viver menos para não ter que morrer tanto. Porém, o segredo da juventude é este: vida quer dizer arriscar-se à morte; e fúria de viver quer dizer vive a dificuldade”.
EXERCÍCIO PARA CASA:
84) Qual é a concepção mítica de Eros? O que é Eros para os pré-socráticos? E para Platão?
85) Quais são as principais dificuldades do amor no mundo contemporâneo?
86) Quão é o primeiro paradoxo da relação amorosa?
87) Qual é o segundo paradoxo da relação amorosa?
88) O que é narcisismo?
89) Qual é o significado do luto na separação conjugal?
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